Uma crónica sobre não querer ter filhos

Por Marina Preguiça.

Lembro-me de que, quando era pequena, um dos meus filmes favoritos era “Olha quem fala!”.
Lembro-me que, apesar de não perceber o que estava a ver, adorava a cena em que os espermatozóides correm em direção ao óvulo, a conversa que têm entre eles e a cena em que se dá, finalmente, a fecundação.
Lembro-me de que também adorava o Mickey, o John Travolta em taxista e a Kirstie Alley como Molly, a mãe. No entanto, e apesar de todo o meu fascínio, nunca quis ser como ela. Quer dizer, cheguei a pensar em ser contabilista, também queria um John Travolta apaixonado por mim, mas nunca quis um Mickey.
Não queria um bebé.

Sou uma mulher, tenho 36 anos e não quero ter filhos. Pela mesma altura em que passava as tardes a ver aquele filme, também as passava a brincar com bonecas, roupinhas e fraldas. Brincava com bonecas não porque era a minha brincadeira predileta, mas porque era a brincadeira das meninas. Os meninos brincavam com bolas e carrinhos, as meninas com bonecas e loicinhas. Era assim e pronto. Desde que me lembro, nunca desejei estar grávida ou ser mãe. E também desde que me lembro que me diziam que, com o passar dos anos, ia acabar por mudar de ideias. Pois… Não aconteceu.
No entanto, seria desonesto dizer que nunca me questionei sobre isto. Em momentos pensei Será que quando as minhas amigas tiverem bebés, vou passar a querer tê-los também?
As minhas amigas tiveram bebés e não passei a querer tê-los. Noutros momentos pensei Será que conforme me for aproximando dos 40 anos e o tempo começar a esgotar-se, vou passar a querer?
Estou a aproximar-me dos 40 anos, o tempo começa a esgotar-se e não passei a querer. Quando ouvi a minha terapeuta dizer que tinha a certeza de que eu daria uma mãe maravilhosa, a minha resposta foi “Obrigada, mas é um talento que optei por não pôr em prática”. Houve também momentos de desconsolo amoroso em que a solidão me faz pensar em tudo e mais alguma coisa, inclusive se não querer ter filhos não era porque ainda não tinha encontrado uma pessoa de quem gostasse realmente e com quem quisesse criar uma vidinha em conjunto. Porém, uma reflexão racional em momentos de coração novamente inteiro fez-me perceber que não. A minha decisão não tem nada que ver com o outro, tem que ver comigo. Sou eu que não quero.
Há uns anos, quando havia uma festa de família, a pergunta era sempre a mesma: “Então, e namorado?”. Quando, finalmente, fiz a vontade aos meus parentes e arranjei um, a pergunta passou a ser outra: “Então, e bebés?”. E mesmo sendo cansativo ouvir a mesma pergunta uma e outra vez, não a levo a mal. A minha família é uma família tradicional, os meus tios e tias têm todos filhos e filhas, os meus primos e primas também, eu sou a exceção à regra. Entendo que a pergunta não vem de um lugar de maldade, mas de uma estranheza perante a minha fuga ao guião que escreveram para mim.
Porém, sempre que me era feita esta pergunta, também havia alguém que me puxava à parte e me dizia, em surdina, quase como se estivesse a contar-me um segredo: “Deixa-te estar assim que estás bem. Queres mais chatices para quê?”. Surpreendentemente, é a minha tia mais velha, a que tem quase 80 anos, quem mais apoia a minha decisão. Nunca lhe perguntei se ela me diz isto por realmente achar que faço bem ou apenas para me fazer sentir melhor. Nunca lhe perguntei porque é que me diz estas coisas às escondidas das outras pessoas. Também nunca lhe perguntei se ela alguma vez se arrependeu de ser mãe ou se gostava de ter tido só uma filha em vez de um casal. Não sei se algum dia vou ter coragem para fazer estas perguntas, mas gostava muito de saber as respostas.
Mas se, de um lado, tenho a minha tia a apoiar-me, do outro tenho um fogo cerrado de críticas vindas de outros familiares. E deles ouvi coisas simpáticas como “Não queres ter filhos, és uma egoísta.”, “Quero ver quem é que vai cuidar de ti quando fores velha” (como se ter filhos fosse uma garantia de apoio incondicional na velhice), ou a que, para mim, foi a mais chocante: “Se não queres ter filhos, não andas cá a fazer nada”. Esta barbaridade só não teve um efeito catastrófico em mim porque foi-me dita num momento em que já tinha uma certeza profunda acerca minha decisão e também a certeza de que o valor de uma mulher não vem do seu útero nem da maternidade.
Felizmente, não vivo cercada só por estas pessoas. Há pouco tempo, durante um jantar com algumas mulheres que tinha acabado de conhecer, falou-se de filhos e eu disse, sem qualquer problema, que não queria ser mãe. O rosto de uma delas iluminou-se e as minhas palavras fizeram-na ganhar coragem para assumir o mesmo. Ela também não quer. Semanas mais tarde, noutro jantar e em conversa com uma mulher mãe de duas crianças, disse que não queria ter filhos. Ela olhou para mim com admiração e disse que era fantástico ouvir uma mulher dizer, segura e sem medo de julgamentos, que não quer ser mãe. Afortunadamente, lembro-me mais das palavras destas duas mulheres e da minha tia, do que das outras absurdezas.
Não posso terminar sem acrescentar que sou uma privilegiada. E tenho o dever de reconhecer esse privilégio. Posso escolher se quero ou não ter filhos, posso escolher usar ou não métodos contracetivos, posso escolher interromper ou não uma gravidez.
Mas, no mundo, continua a haver milhões de mulheres que, injustamente, ainda não podem decidir sobre o seu corpo e o seu futuro.
É delas que não devemos esquecer-nos, é delas que temos de falar e é por elas que também devemos lutar.

Marina Preguiça

Feminista, ecologista e actriz, tudo de forma imperfeita e amadora. 
Ouve podcasts, lê menos do que queria e vê mais televisão do que devia.

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