chamemos-lhe inevitabilidade

Por Soraia Queijo.

Às vezes o preenchimento automático – de um computador mal habituado – ainda me assume como moradora de outra rua e outra vida. Corrigi-lo nunca me doeu, aquela rua estreita para carros e larga para pessoas desfez-se de ser minha, habitei noutra com passos firmes e raízes de céu.
Nesta rua e nos amores que vivo, chamemos-lhe assim, ou inevitabilidade – que é a mesma coisa – sinto-me sempre personagem distinta, assumida consoante a contracena. Nisto que vivo, chamemos-lhe descoberta ou amor – que é a mesma coisa – tenho-me conhecido várias vezes, viagens diferentes para o mesmo caminho. Chamei-lhe inevitabilidade, há falta de melhor termo ou pela força da crença de que não voltarei a amar. Fui sendo várias e uma só, querendo vários e nunca um só, descobri que há amores velhos, ele (aquele – chamemos-lhe, também, inevitabilidade) sempre me disse que me saberia sempre a pele, o cheiro e o beijo.
Descobri vários mundos num par de mãos que me seguraram, amaram. Elas, as mãos, fizeram-se minhas e eu delas, daquelas mãos e de outras. Não exclusivamente, mas exaustivamente. Descobri que no meu corpo havia vários e muitos, descobri que eu podia ser eu, ou outra coisa qualquer, tanto fazia, nunca vazia, porque estava inteira, imensa, toda.
Uma vez, várias vezes, noutra vida em quarentena – eu e o mundo por causa da pandemia – o meu coração também ele em quarentena porque não havia amor – um fenómeno tinha acontecido: Os dias assumiam uma cadência que desconhecia. As noites. Carência. O meu coração saiu-me várias vezes pela boca e voltava doloroso para o meu peito, doía sempre quando voltava, menos quando o vomitava. Depois, depois foi a poesia que me salvou e não me afogou na espera. E agora tudo é diferente, o meu coração não sai do peito, eu não saio de mim. Decidi permanecer em mim, de uma forma longa e inesperada como só os inconformados sabem fazer. Fiz uma revolução por dentro. 

Sinto hoje que ser-me-á tão difícil reconhecer o amor como é difícil reconhecer uma contracção no nosso primeiro trabalho de parto. O primeiro trabalho de parto, viagem escura e sem mapa, em que não sabemos os contornos da dor de uma contracção e surge a dúvida de como reconhecer o que nunca se viu.
Parir amor de qualquer das formas. O amor é a pergunta e a resposta.

Soraia Queijo

35 anos, psicóloga, terapeuta familiar e de casal. 
Mãe de 3, inconformada, inquieta, escrevo nas horas ocupadas de um sítio que se chama Sines. 
Gosto do sol, de poesia e, essencialmente, de pessoas - quase todas. 

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