Por Alícia Gaspar.
Com a idade passei a olhar-me com outros olhos. Olhos traidores, por vezes. Explico, cresci numa sociedade que, também ela, cresceu com a introdução da tecnologia, também graças à contracultura. Uma sociedade “virada do avesso” em que quase tudo o que existia está extinto e inventam-se coisas novas para substituir as que foram destruídas, em que é difícil ser respeitada e, na qual, ser mulher é como correr descalça a maratona no deserto mas num chão revestido de arame farpado, em chamas. How nice!
Aproveitei os meus anos de criança para fazer o que mais gostava – ver filmes. Podia ver o mesmo filme várias vezes porque era pirateado, apesar de os meus pais correrem o risco de ir parar à prisão por comprarem um DVD ilegal na feira da ladra. Eu estava ok com essas condições. No entanto, a alegria de ser menina numa sociedade para mim desconhecida, rapidamente apresentou os seus contras quando entrei na escola e os meus colegas ou me queriam roubar beijos ou o lanche. Golden age!
Já mais tarde, com 13 anos, e ao entrar numa nova escola e ciclo comecei a deparar-me com padrões de beleza femininos irrealistas. No entanto, para mim e para a maioria das raparigas, não eram irrealistas. Ter uma pele perfeita, olhos verdes num dia e no outro roxos, o cabelo loiro puro e umas ancas largas mantendo uma cintura de 3cm era possível! E sem as tretas do Ómega 3. Claro que não eram precisos os milagrosos produtos por apenas 49,99€ o comprimido, existia algo ainda melhor e – atenção, atenção – gratuito! O photoshop.
Desconhecíamos ainda a ferramenta que viria alterar tudo.
Em alguns momentos da minha vida questionei-me porque me sentia diferente de todas as mulheres e raparigas que via online, tentava de certo modo adequar-me àquela realidade momentaneamente, felizmente não passei por graves “crises” em que sentia que tinha que mudar o meu verdadeiro eu, talvez devido à minha preguicite aguda… Mas a realidade é que a exposição de uma jovem adolescente a este tipo de conteúdo pode alterar em muito a sua mentalidade, a maneira como se vê, a maneira como se permite ser tratada, e a maneira como irá desenhar o seu futuro.
De novo, olhos traidores, e porquê?
Porquê atribuir uma conotação negativa à minha visão, se a culpa reside na sociedade e na maneira como esta cria e fortifica desigualdades?
* texto originalmente publicado em buala.org.
Alícia Gaspar. Lisboa, 1998. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo Instituto Universitário de Lisboa — ISCTE. Licenciada em Estudos de Cultura e Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Editora e assessora de comunicação na plataforma cultural BUALA. Procura interligar vários tópicos de índole social contemporânea com a área digital, nomeadamente o feminismo, o racismo e a comunidade LGBTQ+.