Por Soraia Queijo.
Observo-os há muito tempo. Todos os dias – assumo eu que são todos pelo rigor e método dedicados – saem de casa. um casal, ele e ela curvados pelo tempo. ele empurra-a na cadeira de rodas, alguns metros desde o prédio onde vivem ao largo passeio na avenida principal.
Ele esforça-se, não é tarefa fácil empurrar aquela cadeira cinzenta e fria onde ela se senta. Empurra-a até ao gradeamento, depois ela, forte e brava, levanta-se e caminha agarrada, suporta o corpo naquele gradeamento e a alma nele. Vai e volta, enquanto ele parado, quieto a espera com a certeza de que ela volta.
Ter a certeza que alguém volta é importante.
Ele observa-a atenta e pacientemente, enquanto ela faz por não perder o hábito de andar. Imagino que estarão também ambos a tentar não perder o hábito do amor, devem já ter muitas vidas juntos. Sempre que ela treina o andar, treinam também a regra de amar. Gosto muito de os observar e pensar em todas as vezes que amei. são dedicados e rigorosos a esta rotina e a outras, imagino eu. O amor, em definição, pode ser isto: dois amores velhos ainda a tentar.
Adivinho-lhes um amor que começou jovem, amor que hoje vai longo e conhecedor. Uma vida noutra vida, outros eles. Já não se reconhecem naquele antes, demasiado distante e inocente. Estão agora a improvisar, a alguns metros de casa, para que não se percam, para que não se sentem definitivamente, para que ela ande, para que não morram, para que ele a espere, para que não desamem, para que não desaguem.
Soraia Queijo. 35 anos, psicóloga, terapeuta familiar e de casal. Mãe de 3, inconformada, inquieta, escrevo nas horas ocupadas de um sítio que se chama Sines. Gosto do sol, de poesia e, essencialmente, de pessoas - quase todas.